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Receber um diagnóstico de autismo dentro do núcleo familiar nunca é algo fácil. Existem muitas emoções, dúvidas e vulnerabilidades presentes nesse processo. Mas muitas vezes, esse foco cai sobre os pais da criança, deixando um pouco de lado a percepção de irmãos de pessoas com TEA.
Durante esse momento de entender e ajustar a vida da família sobre as diversas possibilidades de uma pessoa no espectro, filhos neurotípicos podem se ver em uma nova configuração, sem saber como comunicar ou até mesmo demonstrar o que estão sentindo.
Pensando nisso, convidamos duas irmãs de autistas para uma entrevista sobre os desafios para famílias com filhos típicos e atípicos.
Letícia Cardoso, do time da Genial Care, e Nicolle Mattos, Analista do Ministério Público Santa Catarina, contaram um pouco das suas vivências e experiências para a gente.
Irmãos de pessoas com TEA: compreendendo a dinâmica familiar
A jornada de criar uma família é cheia de desafios, descobertas e momentos inesquecíveis. Quando há um membro da família com Transtorno do Espectro Autista, a dinâmica familiar pode ser única, demandando compreensão, paciência e apoio.
Assim, os cuidadores precisam se atentar também aos irmãos de pessoas com TEA, mesmo que eles não tenham nenhum transtorno de desenvolvimento, porque assim como qualquer criança descobrindo o mundo, é preciso que as necessidades emocionais deles não fiquem em segundo plano.
Para conseguir entender o impacto nos irmãos atípicos, é fundamental compreender o espectro, as individualidades das pessoas e também como esse diagnóstico irá impactar a dinâmica familiar daqui para frente.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por dificuldades na comunicação e interação social e pela presença de padrões de comportamentos restritos e repetitivos.
Assim, a conscientização e acesso às informações verdadeiras, são essenciais para estabelecer uma base sólida ao abordar as complexidades que surgem dentro da família.
Como lidar com o diagnóstico?
Todo o processo que envolve a descoberta do autismo em um dos filhos é extremamente difícil.
O que acontece é que nesse momento, frequentemente, as necessidades, desafios e desejos do irmão típico podem ser deixadas de lado, mesmo que inconscientemente. Muitas vezes, o desconhecido acaba gerando uma sensação de angústia na criança, que não sabe como será a vida dela e a do irmão.
Letícia conta que não se recorda exatamente de uma conversa entre ela e os pais para explicar o que o irmão, Igor Cardoso, tinha. Isso porque, nessa época, eles ainda não tinham um diagnóstico fechado.
“O que eu lembro com profundidade é de que os meus pais sempre diziam que o Igor era especial. A palavra era sempre utilizada para explicar as questões de desenvolvimento dele. Mas, o que eu sentia de fato, é que ele precisava de um pouco mais de ajuda e que era o meu irmão. Nada mais que isso.”
Já os pais de Nicole desconfiavam, desde cedo, que o filho Matheus Mattos Corrêa tivesse algum atraso no desenvolvimento. Ela lembra da busca deles por profissionais para conseguirem traçar um diagnóstico, feito ainda na infância, o que foi excelente para o desenvolvimento dele.
Nicole diz que mesmo sem entender de fato o que era o TEA e não ter tanta informação sobre o assunto, o irmão precisava de mais atenção em algumas questões do dia a dia.
“A questão de se fechar um pouco mais, de ser um pouco mais tímido, de ter esses atrasos no desenvolvimento e na forma de falar, era algo que eu percebia. Para o meu pai e minha família, a gente buscou essas ferramentas de inclusão para ele, mas principalmente para gente entender. A compreensão sobre o que é o autismo facilitou muito a nossa convivência”
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Precisamos lembrar que o diagnóstico de TEA não é fechado somente por um único profissional, e sim, por uma equipe colaborativa que investigará o comportamento e entender se aquela pessoa apresenta os sinais do espectro autista.
Dessa forma, é fundamental que a família busque ajuda de pessoas capacitadas e comece a realizar as intervenções mesmo sem um diagnóstico fechado.
Como foi entender a rotina em casa na perspectiva do irmão atípico?
Sabemos que o autismo, além da pessoa diagnosticada, envolve a todos da família.
Por isso, é fundamental existir uma comunicação e que cada indivíduo entenda a importância de construir uma rotina que contribua para o desenvolvimento e aprimoramento de habilidades.
Nesse ponto, a inclusão é algo muito importante dentro de casa!
Para Nicole, isso foi um ponto-chave na hora de estabelecer a rotina com Matheus. Ela fala que a partir do momento em que toda a família entendeu que o irmão tinha autismo, foi mais fácil encontrar maneiras de incluí-lo nas ações do cotidiano e entender algumas crises que ele tinha, por exemplo.
“Quando a gente pensa na inclusão em casa, ter sempre clareza das coisas, sempre jogar abertamente com as pessoas que fazem parte do núcleo familiar a respeito do autismo, as características do autismo, as condições e as restrições também”.
Ela ainda pontua que acha muito importante trabalhar e falar sobre isso e de uma forma natural, porque quando existe um mistério envolvendo, é muito mais difícil de compreender e de incluir dentro da própria casa.
Já Letícia afirma que a informação, atenção e momentos em família foram fundamentais para que todos pudessem se engajar em uma atividade.
“Incentivar os filhos não só a aprenderem de fato como cuidar do irmão, mas também fazer com que eles brinquem juntos e tenham momentos um com o outro dentro do gosto e universo de cada um. Eu constantemente observava o Igor para entender o que poderia deixá-lo feliz.”
Ela sempre incentivou que ele participasse de coisas que ela gostava, como ver filmes e escutar músicas. Foi assim que a irmã entendeu que os dois podiam compartilhar momentos juntos, respeitando as individualidades e as semelhanças de cada um.
Para irmãos de pessoas com TEA, como foi lidar com o medo em relação ao futuro?
Receber o diagnóstico de TEA nunca é fácil. Existe uma quebra de expectativas sobre o futuro e uma insegurança de como será a rotina dali em diante.
Esse é um momento em que a família precisa de calma, já que vivenciar todas essas emoções é totalmente esperado. É importante lembrar que o futuro não será algo ruim, apenas diferente do que imaginamos.
As pessoas cuidadoras por um medo e insegurança com questões do futuro e, em casos onde a família já têm um irmão ou irmã típico, existe ainda uma pressão para que esse filho cresça mais rápido e seja responsável pelos cuidados futuros da criança com autismo.
Essa é uma temática presente em muitas famílias e que, muitas vezes, gera um impacto emocional de pressão muito grande nos irmãos de pessoas com TEA.
Letícia passou por isso e conta que sempre foi bastante cobrada para agir como adulta, mesmo quando era criança.
Em suas palavras, ela conta existir um peso a mais em relação ao que aconteceria dali para frente, não somente porque o irmão precisava do apoio dela ou dos pais, mas como se ela tivesse que encarar a vida de frente com as responsabilidades para estar preparada caso a mãe falecesse e ela se tornasse a principal cuidadora do Igor.
“Há uma frase que sempre ressoa na minha cabeça até hoje e que escuto desde sempre: ‘é você quem vai cuidar do seu irmão’. Sinto que essa cobrança um pouco rígida acabou dificultando a minha capacidade de ser vulnerável e estreitar algumas relações familiares, porque eu sempre senti que deveria ser forte e me virar sozinha.”
Alguns exemplos de como isso a afetou foi por se sentir mal quando tirava uma nota ruim na escola, ter muita ansiedade em terminar a faculdade ou ficar absurdamente preocupada com salário e trabalho, por ser a responsável pelo futuro do irmão.
“Sinto que as coisas teriam sido psicologicamente mais fáceis se eu tivesse aprendido mais cedo que o amor vem antes do cuidado e que tudo tem o seu tempo.”
Por isso, todas as questões que envolvem essa incerteza com o futuro e o medo que virá, precisam ser trabalhadas desde cedo, no núcleo familiar como um todo.
As relações familiares precisam evitar que laços emocionais deixem de ser construídos, impactando a relação de todos e até mesmo o desenvolvimento da criança no espectro.
Nesse caminho, a orientação parental e a inclusão dos irmãos de pessoas com TEA de forma leve são ótimas formas de aumentar a probabilidade de resultados positivos para o desenvolvimento das crianças, típicas e atípicas, ajudando que elas aprendam e potencializam as habilidades e comportamentos que guiarão na vida real.
Assim, fica muito mais fácil explorar as oportunidades de desenvolvimento se a família está em harmonia.
Então, aproveitar que pais e irmãos são os professores mais naturais, independente de qualquer intervenção, é uma forma super eficiente de garantir que todos desenvolvam todo seu potencial!
Qual o papel dos irmãos de pessoas com TEA no núcleo familiar?
Assim como os pais e pessoas cuidadoras, os irmãos de pessoas com TEA também têm um papel fundamental para o desenvolvimento e repertório da pessoa com autismo, em todos os sentidos.
A comunicação é muito importante nesses momentos, seja para pedir por ajuda, criar laços, participar de alguma atividade ou entender as emoções de cada um.
Letícia afirma que seu papel sempre foi o de incentivar Igor a conhecer novas coisas e aumentar seu repertório. No entanto, ela conta que, mesmo com a comunicação, existiu uma preocupação a mais com a segurança e as necessidades de cuidados que ele precisava.
“Se eu pudesse voltar alguns anos, eu teria feito mais bagunça em casa com ele, mesmo levando bronca depois. Porque irmão é isso mesmo, é quem incentiva você a descobrir coisas novas e explorar o mundo, é quem é o seu cúmplice na vida. Os pais cuidam e os irmãos fazem parceria um com o outro.”
A representatividade em séries e filmes pode ajudar irmãos atípicos a entenderem melhor a rotina
Os momentos de Sam e Casey, irmãos na série Atypical, da Netflix, retratam muito bem esse papel no cotidiano. É possível ver o quanto a irmã ajuda em crises e comportamentos desafiadores, e o quanto ela consegue explicar para o irmão o que está acontecendo.
O seriado também desmente um mito de que as pessoas autistas não querem se relacionar ou querem viver em seus próprios mundos. Isso não é verdade!
Na maior parte das vezes, pessoas autistas só precisam de um tempo maior para se sentirem confortáveis nessas situações.
Hoje como adulta, Letícia entende que a relação vai sempre além, e que ela está ali para dar o amor máximo e estar presente sempre que possível para o irmão. Para Nicole não é diferente. Ela acredita que a relação dos irmãos é de desenvolvimento para que ele estivesse preparado para as interações fora de casa.
“Então, se ele encontra carinho e acolhimento em casa, ele vai se sentir muito mais confiante para poder estabelecer as relações na escola e na sociedade de forma geral. Então, entendo que eu tenho uma importância crucial… e também pensando nesse acolhimento durante toda a vida, porque a família é a base de qualquer ser humano.”
Dicas para as famílias com filhos típicos e atípicos
Precisamos sempre encontrar maneiras de ajudar todas as pessoas da família a lidarem com as dúvidas em diversos momentos, para existir qualidade de vida e bem-estar para todos.
Algumas dicas podem ajudar nesse momento de desafio para famílias com filhos típicos e atípicos:
- explique sem rótulos e de forma acessível sobre o que é o autismo;
- a honestidade é sempre melhor em todos os momentos;
- sentimentos e dúvidas vão surgir, por isso, crie um espaço seguro para que todos possam compartilhar o que sentem;
- livros podem ajudar a trazer algumas explicações para os pequenos;
- a conversa precisa ser contínua e inclusiva.
Letícia e Nicole também compartilharam suas experiências e dicas para as famílias que estão começando nessa jornada. Para Letícia, é importante sempre construir uma relação com o irmão baseado em laços e não apenas em questões de cuidados.
“Para os irmãos típicos, eu diria o seguinte: não tenham tanto medo do futuro, brinquem mais com os seus irmãos, observem o que eles gostam de fazer, principalmente para que vocês possam criar memórias juntos”.
Ela ainda dá dicas como: leve seu irmão ou irmã com autismo para explorar coisas novas, sejam sinceros quanto ao sentimento de vocês em relação à família, busque se conectar também com outros irmãos de crianças com autismo.
Conversar abertamente com os pais, buscar terapia se necessário e, principalmente, não ter medo de pedir ajuda se o coração apertar um pouco mais forte, é fundamental no processo.
Nicole acredita que a verdade é o principal caminho na relação na família, e que ninguém deve ter medo de buscá-la. Ela entende que muitas famílias acabam ficando com medo de buscar e confirmar o diagnóstico, já que existe muita desinformação, principalmente na internet.
“Só que na verdade se o seu filho tem autismo e você consegue esse diagnóstico cedo, as chances dele se desenvolver por conta da plasticidade neural e também para buscar a ferramenta, os recursos para consolidar a inclusão dele, são muito mais palpáveis e fáceis de buscar se você já teve um diagnóstico na mão.”
Além disso, ela fala sobre um ponto muito importante: os direitos dos autistas. Junto do diagnóstico, as famílias precisam entender que existe todo um apoio quando pensamos na lei.
Hoje existem diversos aparatos que são direito de pessoas com TEA receber, como o direito à inclusão efetiva e as ferramentas de inclusão na escola, como professor auxiliar e sala de recursos multifuncionais.
Os cuidados de hoje terão resultados no futuro
Existe uma série de cuidados que as famílias podem adotar para que a jornada de todos possa ser muito mais leve, inclusiva e feliz. Nesse momento, profissionais capacitados podem ajudar a criar intervenções que respeitem as necessidades da casa como um todo.
É preciso sempre respeitar as individualidades de cada um e entender que a comunicação é a chave para criar um ambiente saudável.
Estimular a conversa e troca entre os irmãos e as pessoas cuidadoras é uma forma de os indivíduos se olharem como eficientes e capazes de enfrentar os desafios que irão surgir, aumentando o repertório de cada filho e também desenvolvendo habilidades para a vida.
“Sempre fico com medo de ele sentir que não é feliz, me dá uma dor no peito pensar nessa possibilidade. Então, tudo que é possível proporcionar em relação a sentir a vida profundamente, mesmo que um vento ameno no rosto ou um pôr-do-sol para ele, eu gostaria de proporcionar”, compartilha Letícia.
Conclusão
Em um mundo que está gradualmente se tornando mais inclusivo, é fundamental reconhecer e abordar as experiências dos irmãos de pessoas com TEA.
Ao compartilhar histórias, desafios e oportunidades, esperamos promover um diálogo aberto e compassivo sobre o papel vital que os irmãos desempenham na jornada de uma família com TEA.
Já falamos aqui sobre a importância do bem-estar dos pais das crianças com autismo. Isso também se estende para os irmãos de pessoas com TEA. A Genial Care está aqui para ajudar você nessa jornada.
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