Índice de Conteúdos
Hoje é o dia do Orgulho LGBTQIA+, movimento que se iniciou em 1969, nos Estados Unidos, com o “levante” ou “revolta” iniciado por frequentadores de um bar gay no vilarejo de Greenwich (NY) que resolveram dar um basta na violência e perseguição policial aos seus membros e espaços de convivência.
Desde então, a data é celebrada em diversos países, inclusive no Brasil. Mas o que isso tem a ver com o autismo? Pessoas no espectro também passam pela puberdade e desenvolvem a sexualidade. E muitas se identificam como membros da comunidade LGBTQIA+.
Para falar mais sobre a importância de abordar o tema dentro da comunidade autista, conversamos com a jornalista Sophia Mendonça.
Sexualidade no autismo
Apesar de ser um assunto ainda pouco explorado, a sexualidade no autismo é um tema muito importante. Isso porque pessoas autistas também passam pelo período da puberdade e desenvolvem a própria sexualidade, assim como as neurotípicas.
Segundo o guia técnico internacional de educação sexual da UNESCO, publicado em 2018, a educação sexual é fundamental para a segurança e desenvolvimento saudável dos jovens. Mas apesar de evidências científicas demonstrarem o efeito benéfico desses programas, poucas crianças e jovens têm acesso a essas informações.
E falando em crianças e adolescentes autistas, a criação de práticas direcionadas à sexualidade e puberdade são ainda menos frequentes. Isso impacta diretamente no aumento da vulnerabilidade dessa população.
Autistas na comunidade LGBTQIA+
Muitas pessoas recebem o diagnóstico de TEA na vida adulta, e ele é parte importante do processo de autoconhecimento. Mas, muitas pessoas autistas também se identificam como membros da comunidade LGBTQIA +.
A orientação sexual dentro do espectro do autismo é um tema que vem sendo objeto de estudo há algum tempo. Em 2018, os pesquisadores George e Stokes publicaram o artigo “Sexual Orientation in Autism Spectrum Disorder”, que analisou diversos dados de pessoas com o diagnóstico de TEA e suas orientações sexuais.
Como resultado, os pesquisadores apontaram que 69,7% das pessoas autistas que estavam no grupo se definiam como homossexuais, bisexuais, assexuais ou outros, enquanto as taxas para pessoas neurotípicas eram de 30.3%.
Apesar disso, pessoas autistas e LGBTQIA+ ainda sofrem muito preconceito dentro e fora da comunidade, e abordar esse tema é cada vez mais importante para ajudar a desconstruir esse tipo de discriminação.
Sophia Mendonça – autista e mulher transsexual
A jornalista Sophia Mendonça recebeu o diagnóstico de autismo na adolescência. Mas desde a infância, sua vida foi marcada por uma série de descobertas sobre a própria sexualidade e a comunidade lGBTQIA+.
“Desde muito cedo, meus interesses eram voltados para o universo feminino. Gostava de brincar com bonecas, adorava ler os contos de fada e me divertia com meu pai, pedindo a ele que desenhasse todos os personagens com as botas do Gato de Botas”, conta.
Ela também se recorda de gostar muito das roupas que a mãe usava, mais do que as próprias. “Adorava, em especial, uma camisola da minha mãe de cetim. A textura do pano era bem interessante. Minha mãe não podia esquecer um sapato de salto alto sem guardar, que eu calçava para ficar igual a ela. Minha mãe nunca me incentivou ou repreendeu por isso”.
Sendo assim, o processo de puberdade foi realmente doloroso para alguém como Sophia, que crescia e se desenvolvia num corpo que não considerava seu. “Eu percebia que meu corpo estava mudando e não gostava do que acontecia. E assim continuou até os 14 anos, quando comecei a apresentar forte fobia social. Minha mãe, como sempre, tentava entender o que se passava comigo. Impossível, já que nem eu mesma entendia”.
A descoberta da sexualidade veio quando ela se apaixonou por um colega de sala, ainda na adolescência, e percebeu que os garotos a atraíam sexualmente.
“Mãe, quero ser menina”
Sophia descreve a fase do ensino médio como um verdadeiro desafio. “Queriam ignorar o autismo e me cobravam o comportamento esperado de uma pessoa com o meu desenvolvimento cognitivo. Não adiantava o quanto eu lhes dissesse ou sinalizasse que havia coisas banais, nas quais eu me saía muito mal, embora tivesse várias outras habilidades”, lembra.
No meio disso tudo, começou a sofrer bullying dos colegas e sentir que as pessoas a evitavam e falavam dela pelas costas. Tudo isso acarretou em uma forte fobia social. Sem conseguir lidar com a situação sozinha, ela se abriu com a mãe, para contar o que estava acontecendo e falou, pela primeira vez, sobre o processo de transição de gênero.
“Queria começar a transição que libertasse a menina, escondida em mim. Minha mãe disse que não entendia nada sobre o assunto, mas que iríamos estudar juntas. Falou também que devíamos procurar profissionais da área de saúde para evitar sequelas futuras”.
“Foi então que descobrimos o despreparo dos profissionais. O psiquiatra soltou uma sonora gargalhada diante de minha mãe e disse. ‘Ora, essa pessoa não sabe de nada. Sequer se apaixonou. Não teve desejo sexual ainda’. Ela intuiu o restante da fala. ‘Não se esqueça que ele é autista’. Capacitismo aliado à falta de conhecimento resultaria, mais tarde, em estresse pós-traumático para mim”.
Vida profissional e transição de gênero
Em 2015, Sophia publicou o livro “Outro olhar: reflexões de um autista”, que foi bem recebido na comunidade e tornou seu trabalho conhecido. Nessa época, começou a ministrar palestras e produzir trabalhos em conjunto com a mãe, Selma Sueli.
Seguindo os passos da matriarca, ela começou a cursar jornalismo, iniciando a carreira na área por meio do site Mundo Autista, com a ajuda da mãe, que também recebeu o diagnóstico tardio.
“Nosso combinado era que iríamos compartilhar nossas vivências para que nenhuma família se sentisse sozinha como nós nos sentimos um dia. Há muito tempo eu usava meu cabelo grande. Resolvi cortar, bem curto, e assumi a homossexualidade como forma de tentar acabar com tanto sofrimento”.
“Tudo seria perfeito, se eu fosse homossexual. Interagindo com esse universo, que me apresentou amigos queridos, percebi que eu não era gay. Segui confusa até que, em 2017, sofri a pior crise de minha vida. Novamente, as pessoas que me cercavam fizeram toda a diferença. A faculdade disse que eu tinha créditos para ser aprovada, mesmo em outubro. Eu me entreguei a um tratamento para me recuperar”.
Foi durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus que Sophia decidiu assumir sua verdadeira identidade de gênero. Nesse momento, ela conversou com outras pessoas da família. “Fui acolhida, apesar do estranhamento causado em todos, exceto minha mãe”.
“Entretanto, com o estranhamento veio também um profundo respeito pela minha coragem e decisão. O mesmo aconteceu com amigos do budismo. Sou membro da Divisão Feminina de Jovens da BSGI – Brasil Soka Gakkai Internacional. Também com meus amigos próximos, meus professores da faculdade e do mestrado e, o mais incrível, a maioria quase absoluta dos seguidores do Mundo Autista. Até ganhei mais seguidores”.
Lidando com o preconceito
Quando o assunto é preconceito, Sophia conta que sofreu ataques online, mas apenas de pessoas que não a conheciam. Alguns dentro da comunidade autista e outros até de parentes próximos.
No entanto, ela ressalta o capacitismo enfrentado, especialmente por profissionais da saúde que – por desconhecimento do TEA – consideravam que a condição a impedia de ter certeza sobre sua sexualidade e orientação.
“Quanto mais eu vivo, mais confirmo que as pessoas temem o que não conhecem e, ao invés de procurar conhecer, lançam opiniões preconceituosas para desmerecer o que elas não conhecem. Essa ignorância coletiva e falta de visão travam o avanço da sociedade. Além disso, produz crueldade e traz muitos sofrimentos desnecessários às pessoas que são excluídas desse estado de coisas pautadas no senso comum”.
Descoberta do coletivo
Entre seus maiores aprendizados, Sophia define o entendimento do significado de coletivo na comunidade LGBTQIA+. “Minha postura humanística me levou a entender que mesmo que eu não quisesse me expor, eu tinha uma responsabilidade na abertura de um caminho para tantas famílias e seres humanos que sofrem, esmagados pela ignorância alheia”.
“Logo, é preciso jogar luz na escuridão fundamental. Levar informações confiáveis à toda a sociedade. Viver seu próprio caminho, desconsiderando o seu próximo, pode evitar sofrimento para a pessoa, mas permite que pessoas ignorantes (na verdadeira acepção da palavra) continuem fortalecendo a exclusão e a crueldade da imposição de sofrimentos a outros seres humanos”.
“Toda a vida é digna, cheia de possibilidades e é preciso que a sociedade ofereça condições equânimes e igualitárias para que todos possamos externar o nosso máximo potencial. Gente é para brilhar e não para ser julgada”.
Família – um porto seguro para as pessoas LGBTQIA+
Outro grande aprendizado para Sophia foi a importância da família no processo de autodescoberta da sexualidade. “Não à toa, nossa família é nosso primeiro amparo. Nosso porto seguro. É muito fácil proclamar o amor incondicional a um filho que corresponda às expectativas dos pais. Mas, como minha mãe diz: filho perfeito é o nosso filho. Seja como ele seja”.
“Quando a família é a primeira a julgar, condenar e excluir, ela passa procuração assinada em branco àquela parte covarde e hipócrita da sociedade para exercer todo seu preconceito, intolerância e discriminação o que resulta em dados estatísticos aterradores de mortes de pessoas trans, no Brasil. E sabem por que esses dados sequer correspondem à realidade que é bem pior? Pelo preconceito de profissionais espalhados pela imprensa, delegacias, associações, e entidades que tratam essas vítimas como responsáveis por sua própria sorte”.
“É preciso que estudemos mais, que nos aprofundemos nas pesquisas acadêmicas existentes se quisermos sonhar com uma sociedade mais justa para todos nós!”, conclui.